250 famílias – pais, mães, filhas e filhos – a classe trabalhadora na luta por um lar. Cansados de morar de favor e sem condições financeiras para alimentar a família e ainda ter de pagar por aluguel, homens e mulheres decidiram unir suas forças para lutar pelo direito de ter um teto, um abrigo, um lugarzinho para chamar de “lar”.
Esses são os invasores que a grande mídia anuncia em seus noticiários e páginas de jornais nos últimos dias. Justamente os que têm seus sonhos invadidos pela dura realidade de uma sociedade desigual. “Onde um vai, todos vão”, essa foi a palavra de ordem que motivou as trabalhadores a resistirem à ordem de despejo e às propostas da Prefeitura Municipal de Aracaju (PMA), que oferecia um auxílio moradia às famílias, que tivessem filhos com idade inferior a 18 anos, no valor de 300 reais durante três meses.
Dois anos atrás esse mesmo cenário se desenhou na capital sergipana, momento em que o Movimento Organizado dos Trabalhadores Urbanos (Motu) decidiu pela ocupação da construção há mais de 23 anos parada, o hotel Brisa Mar, situado na Atalaia velha. O resultado: até hoje centenas de famílias que participaram do processo de resistência e luta por moradia permanecem em galpões num bairro da região oeste de Aracaju, o Siqueira Campos, sem que haja previsão de quando poderão ter suas próprias casas.
Este ano, foram 43 dias ocupando o Flat Atalaia, construção abandonada há mais de 10 anos, localizada numa zona privilegiada da cidade. Quem não compreende o contexto em que vivem essas pessoas facilmente é seduzido pelo discurso nada ingênuo dos que acham que essa tarefa não é obrigação do Estado.
Relatos de uma ocupação urbana – Enquanto aguardava o coletivo, dentro d’um terminal de integração de transportes para que pudesse chegar até a ocupação, fui sacudida pelos murmurinhos de cobradores, motoristas e alguns passageiros que chamavam de vagabundos, os que assim como eles também eram explorados pelos patrões. Fiz ouvido de mercador e seguir viagem.
Ao chegar ao Flat Atalaia, apreensiva por conta do prazo de despejo que junto com a comemoração junina batia à porta, fui recebida pelo coordenador do movimento que me deixou a par de toda a situação. Aquele prédio, de quatro andares e uma boa quantidade de quartos ainda era pequeno para a quantidade de gente que já se encontrava ali. De idosos a crianças, além de gestantes. Pessoas de carne e osso que tinham de lidar com as faltas, mas que não mediam esforços para lhe conseguir um copo d’água.
Alheias as discussões e às lutas, as crianças pareciam felizes com a nova morada e a quantidade de vizinhos de mais ou menos a mesma idade. Fui convidada por uma delas para conhecer a sua casa, no último andar. Respondi com um sorriso e lancei-me às escadas. Fui-me embora e quando se pisa no chão do local que você pode chamar de seu é impossível não refletir sobre as contradições que nos são impostas diariamente.
Poucos dias após a visita, mais precisamente no dia 20 de julho, as famílias foram despejadas. Sem ter outro local ou qualquer garantia de que todos ali teriam seus direitos assistidos, a solução foi ficar com seus poucos pertences na avenida. De chuva a sol, dia e noite, calor e frio. Debaixo de lonas, tendo o chão forrado por papelões, o balde que servia de chuveiro, elas viveram ao léu por mais quatro dias.
Caminhões de mudança, tropa especial da polícia militar (a Choque) foram tomando conta das imediações da Avenida Mário Jorge. Aos poucos e ainda com olhares apreensivos, o pessoal recolhia seus objetos, desmontavam seus barracos com destino ao galpão (aquele citado anteriormente) já ocupado por outros tantos.
Um dos comandantes da operação prometeu (mesmo diante dos meios de comunicação que faziam a cobertura do fato) resistir com ou sem confronto. Felizmente a desocupação da via pública foi pacífica. Diferente do sutil poder de coerção que outro policial tentou imprimir ali. Enquanto os membros do Conselho Tutelar de diversos distritos observavam as crianças, e apenas observavam, uma comissão de ciranda cuidava dos pequenos protegidos da chuva – que naquele momento já era demasiada – por uma lona erguida e sustentada pelos estudantes universitários solidários ao movimento e à causa, o tal policial, aproxima-se, identifica-se, distribui balas as meninas e meninos organizados em fila.
O que parecia um gesto delicado, logo se revela numa forma, encontrada pelos que amedrontam crianças e adultos dada a truculência utilizada nas abordagens, de ludibriar a garotada. Após a entrega do “presente” o policial pede para que as crianças repitam com ele: “e a choque é: amigo!”. Por sorte, os pequenos guerreiros (contentes com os doces recebidos) preferiram repetir o grito que faz parte de suas histórias: “Na luta por moradia: MOTU, MOTU, MOTU”. E as brincadeiras de roda continuaram.
Nas palavras de Arnaldo Antunes, muito embora a melodia aqui tenha de ser outra, “a nossa casa é de carne e osso (...), a nossa casa não é sua nem minha, não tem campainha pra nos visitar”. E a luta ainda continuará.
Nova ocupação – A luta não para enquanto não houver um vencedor. Ela continuará sempre que haja esperança. Sempre que os ideais de uma causa continuarem vivas na memória. Para o Movimento Organizado dos Trabalhadores Urbanos (MOTU), a luta não é só um meio, é uma causa completa. É, acima de tudo, uma resposta contra o sistema parcial que oprime boa parte da população marginalizada. E, sustentado por esses ideais, que o MOTU voltou a ocupar a mesma obra inacabada na Atalaia Velha de dois anos atrás, o hotel Brisa Mar.
O que parecia ser um caso resolvido para a Prefeitura Municipal de Aracaju, quando policiais retiraram os ocupantes da Av. Mário Jorge Menezes Vieira, na Coroa do Meio, significou só uma derrota para os desabrigados que, pouco depois, ocuparam o prédio no qual seria construído o hotel. Logo ao chegar na Av. Rotary, não é possível ter ideia do que está ocorrendo dentro do prédio, pois há um grande muro branco no térreo. O único elemento a chamar a atenção dos que passam é uma bandeira vermelha.
Basta, porém, dar a volta no quarteirão até chegar ao outro lado, na rua Des. Otávio Leite para ter ideia do que está se passando dentro da construção. Os arames das cercas de concreto cobertos de roupa, formando um varal improvisado, e uma única entrada guardada pelos ocupantes já dão ideia da gravidade da situação. Logo ao chegarmos, fomos abordados por Silvaney de Jesus, conhecido como “Baiano”, e um dos membros na diretoria do movimento.
Para se ter uma ideia de como está a convivência dentro da ocupação, “Baiano” achou melhor que ouvíssemos um ocupante que não estivesse ligado à diretoria. Para isso chamou Lourival Santos Júnior, um guardador de carros, recém-chegado ao MOTU e que atua como um assessor da comunicação dentro da ocupação, levando a informação dos líderes às famílias que convivem no local.
De forma muito sincera, o homem de 33 anos contou tudo o que está acontecendo dentro e fora da ocupação. Mesmo sendo relativamente novo dentro do movimento (ele entrou há um ano), o guardador de carros demonstra confiança em tudo que está sendo feito mesmo da precariedade da sua situação. Segundo Lourival, “a rotina dos ocupantes é individual: há aqueles que estão totalmente envolvidos com o movimento, enquanto outros fazem seus devidos trabalhos, mesmo sem ter uma garantia de que seu barraco ainda estará lá quando voltar”, afirma. E ainda explica que ele, até pela própria função interna, não trabalha a semanas, coordenando as famílias e buscando informações.
Os vizinhos também são diversificados. Há aqueles que enxergam a humanidade no olhar dos desabrigados e contribuem com roupas e alimentos, além de alguns oferecerem até trabalho para os ocupantes. No entanto há outros que criminalizam a atividade agindo com desprezo apenas por saber que a pessoa está fazendo parte do movimento. Esses são aqueles que também tomam atitudes com o intuito de bani-los ainda mais da sociedade. O ocupante também alerta a respeito das pessoas que servem como espiões implantados no movimento para enfraquecê-lo, além de ataques (segundo ele) externos como uma pichação em uma casa em frente ao prédio ocupado no qual está escrito em vermelho: “Lutar não é crime”. E não é. Mas não foi uma mensagem escrita pelos desabrigados, isso eles garantem.
Após uma breve conversa, Lourival nos leva para um tour pelo andar térreo do prédio (único andar que está sendo ocupado). Os barracos são divididos com pedaços de madeira, plástico, tecidos, tudo que puder ser utilizado sem prejudicar a saúde de nenhum deles. Ao todo existem 150 famílias no local. Cem a menos que a ocupação da Av. Mário Jorge, no Flat Atalaia. Uma perda compreensível já que, como não há garantias, muitos perdem a fé ou acham que há formas mais fáceis de garantir uma moradia. No entanto, se ainda persistem mais da metade das pessoas, é porque a crença na causa no movimento ainda corre em suas veias e vislumbram um sentido para se fazer esse sacrifício. Ele ainda mostrou a verdade do abandono do prédio: uma pintura em uma das pilastras feitas pelos integrantes do MOTU durante a ocupação em Maio de 2008. “É engraçado que o prédio só têm dono quando ocorre um episódio similar”, coloca em meio a um riso sincero. A situação em si só leva a mais respostas. Enquanto famílias precisam urgentemente de um lugar para poder chamar de lar, um espaço supostamente disponível está abandonado a mais de dois anos.
O MOTU – No trajeto final do passeio, fomos levados de volta a companhia de “Baiano” que explicou um pouco sobre o que de fato é o MOTU e como estão se dando as negociações. O Movimento Organizado dos Trabalhadores Urbanos já existe há quatro anos no estado de Sergipe, estando presente em cerca de dezesseis municípios. Dentre os participantes do movimento, 95% são trabalhadores informais e autônomos. Como se trata de um movimento social, o único requisito para integrar movimento é não ter uma moradia própria ou condição para comprá-la.
Segundo este membro da diretoria, as negociações partem para um novo rumo, após 10 dias de ocupação no Brisa Mar. A Prefeitura Municipal de Aracaju fechou-se na proposta do auxílio moradia de 300 reais, que não contempla os ocupantes. “De que adianta esse dinheiro se depois desses três meses muitas famílias não terão como pagar seus alugueis e serão despejadas? E os idosos e pessoas que não possuem crianças e adolescentes na família? Essa não é a forma de resolver o problema”, replica Silvaney.
Agora, os membros movimento social buscam a ajuda do Governo Estadual, na busca de um cadastro único para as famílias desabrigadas em programas de moradia popular e um espaço para que elas sejam alojadas enquanto suas casas sejam construídas. Mas, claro, esse ainda é uma parte desse processo de luta.
Confiram alguns vídeos do MOTU:
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