Lei Maria da Penha: avanços e polêmicas

quinta-feira, 21 de julho de 2011

Folder do Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres - Defensoria Pública  do Estado de Sergipe
Faltando pouco mais de quinze dias para o aniversário de 5 (cinco) anos da publicação da lei Maria da Penha, muitas mulheres ainda não sabem como proceder quando são agredidas seja verbal ou fisicamente. Causando polêmica não só entre as mulheres, como também entre aqueles que lidam com as leis diariamente, a lei Maria da Penha traz inúmeras novidades que visam principalmente caracterizar a violência contra a mulher, como uma violência específica e que necessita de um tratamento especial.
Inúmeras opiniões sobre a lei foram publicadas. Há quem diga que a lei ajudou muito, que estimulou as mulheres a denunciarem mais, ao encorajamento dessas mulheres agredidas a procurar ajuda. Há quem não concorde, e acredite que a lei ainda não alcançou o seu objetivo e sua eficácia. Mas como proceder em caso de agressão?

Departamento de Atendimento aos Grupos Vulneráveis (DAGV) -  Foto: Daniele Melo

“Inicialmente a mulher agredida tem que comparecer à Delegacia de Proteção à Mulher que fica na rua de Itabaiana no centro da cidade, e lá será registrado um boletim de ocorrência. Se ela estiver lesionada fisicamente é expedida uma guia de exame onde ela é encaminhada ao Instituto Médico Legal (IML) e posteriormente será instaurado um inquérito policial” explica a delegada Érika Farias.
Se ela não estiver lesionada, o inquérito também pode ser instaurado, seja por ameaça, injúria. Muitas mulheres desconhecem que a ameaça, a agressão verbal, ou a injúria também são tipos de violência. A delegada Érika explica que após o registro, o boletim de ocorrência é encaminhado ao cartório, onde são registradas as declarações da mulher agredida.
“Neste momento podem também ser ouvidas as testemunhas do caso, e posteriormente é feito o interrogatório do agressor e por último a delegada elabora um relatório finalizando o procedimento policial e encaminha o procedimento a Décima Primeira Vara Criminal” relata Érika. Entretanto, se o caso for mais sério, a delegacia deve colocar em prática as medidas protetivas de urgência, trazidas pela lei Maria da Penha. “A vítima vem com a testemunha, a gente já encaminha de imediato à Justiça e paralelamente enquanto aguardamos essa ordem judicial referente à cautela protetiva, prosseguimos com o inquérito policial. Antes não era assim, fazíamos um procedimento bem simples (termo de ocorrência circunstanciado) e era encaminhado ao juizado especial criminal. Agora podemos pedir a prisão preventiva do agressor, quando ele não cumpre as medidas protetivas solicitadas pela Justiça; podemos prender o agressor em flagrante de delito; e temos a oportunidade de acompanhar estas vítimas à Casa Abrigo” explica a delegada.
Depois que o inquérito é encaminhado à Décima Primeira Vara Criminal, ele se torna processo a partir da denúncia do Ministério Público, adentrando assim a um novo trâmite, a fase processual. Seguindo a ordem, estes processos são encaminhados para o Núcleo Especializado de Promoção e Defesa das Mulheres (NUDEM). Essa instituição tem dois papéis de extrema importância para a conclusão do processo como um todo.

Defensoria Pública que funciona no segundo andar do DAGV. Foto: Daniele Melo


Primeiramente, o Núcleo faz a abertura de ações judiciais referentes ao direto de família, pertencentes ao processo civil. Entre elas estão:

1 - Pedido de afastamento do agressor do local de convivência com a ofendida;
2 - Proibição da aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, fixando um limite mínimo de distância entre eles e o agressor;
3 -  Restrição ou suspensão de visitas do agressor aos dependentes que possuem menos de 18 anos de idade;
4 - Prestação de alimentos provisionais ou provisórios (até que a mulher se restabeleça, caso ainda tenha condições para trabalhar);
5 - Encaminhamento da ofendida e seus dependentes ao programa oficial comunitário de proteção ou de atendimento;
6 - Determinação à recondução da ofendida e de seus dependentes ao respectivo domicílio, após o afastamento do agressor;
7 - Determinação da separação de corpos, bem como a restituição de bens indevidamente subtraídos pelo agressor à ofendida;

Paralelamente, o NUDEM encaminha o processo para a Décima Primeira Vara Criminal, que recebe todos os processos referentes à lei Maria da Penha. Essa parte é decisiva, pois a partir daí ocorre o maior número de desistências; e momento em que geralmente o processo penal vai por água abaixo é quando acontece a audiência preliminar. Essa audiência ocorre baseando-se no artigo 16 da Lei que diz o seguinte:


Artigo 16. Nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida de que trata esta Lei, só será admitida a renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público.

Ou seja, o encontro entre a mulher e o juiz durante essa decisão é o divisor de águas, pois depois dele, quem sofre a violência não pode mais voltar atrás e isso acaba criando certo receito por parte das vítimas. Entretanto, muitas vezes, o caso não chega nem a passar por esse procedimento e, segundo a Defensora Elvira Lorenza Quaranta Leite, coordenadora do núcleo, as causas são diversas. “Enfrentamos muitos problemas com isso. Por exemplo, uma das falas mais comuns é que o marido está decidido a mudar depois que encontrou Jesus. Em outros casos vemos a dependência das mulheres que dizem: ruim com ele, pior sem ele”. Mas talvez essas não sejam as piores situações. Ela conta que existe uma espécie de herança da violência. “Muitas dessas mulheres dizem que se as avós e as mães delas apanhavam, elas também podem aguentar a situação”, lamenta a defensora.



Desde que o NUDEM foi criado, em novembro de 2009, notou-se uma periodicidade nas queixas sobre a violência contra a mulher. A coordenadora disse que nos períodos antecedentes às datas comemorativas como o natal e o carnaval, por exemplo, o número de denúncias sofre uma queda vertiginosa. Isso pode significar um dado preocupante, pois se a vítima sofre um ato de violência no início desse período, muito provavelmente ela acaba desistindo de lutar por seus direitos ao passar dos dias festivos.

Defensora Elvira Lorenza Quaranta Leite. Foto: Victor Bruno

Outra situação que também preocupa é a questão dos horários de funcionamento e a abrangência do núcleo. Hoje, a delegacia especial da mulher não funciona durante os finais de semana e feriados. Sendo assim, ocorrências dessa natureza são encaminhadas à delegacia plantonista. Isso gera um grande empecilho ao trabalho da instituição, pois o homem que praticou uma ação violenta não é tratado da forma adequada, uma vez que quem trabalha em delegacias comuns não é treinado para lidar com esse tipo de situação. Além do mais, o Núcleo Especializado de Promoção e Defesa das Mulheres atende apenas à região da grande Aracaju. Essa deficiência ocorre por uma falta generalizada de defensores públicos no estado de Sergipe, tanto na questão das vagas quanto na especialização para os casos relacionados à lei Maria da Penha.
Para finalizar, a Drª Elvira frisa que ainda é muito importante a discussão dessa temática no Estado. Para isso, o NUDEM se esforça promovendo palestras voltadas principalmente às mulheres de comunidades carentes - alvos mais vulneráveis contra o abuso masculino. Ligados às palestras, existem também programas de reintegração da cidadã na sociedade. Essas iniciativas vão desde eventos que buscam despertar na mulher a beleza já esquecida no processo cotidiano de submissão vivido por elas, até o encaminhamento para grandes centros de tratamento psicológicos, como as universidades que possuem o curso de Psicologia e os Núcleos de Atendimento Psicológico (CREAS).

Números em Sergipe

Só este ano, foram contabilizados 1.343 (mil trezentos e quarenta e três ocorrências - verde na tabela), destas 451 (quatrocentos e cinquenta e um - amarelo na tabela) inquéritos foram instaurados, destes 369 (trezentos e sessenta e nove - vermelho na tabela) estão em andamento e 293 (duzentos e noventa e três - lilás na tabela) foram concluídos. Ocorreram 548 (quinhentas e quarenta e oito - rosa na tabela) mediações ou conciliações e 174 (cento e setenta e quatro - azul na tabela) desistências.
Dados 2011. Fonte: Delegacia da Mulher - Aracaju -SE

Em 2010 foram ao todo 2918 (dois mil novecentos e dezoito - azul na tabela) registros de ocorrências e 564 (quinhentos e sessenta e quatro) inquéritos instaurados.

Dados 2010. Fonte: Delegacia da Mulher - Aracaju - SE



O debate: uma lei resolve tudo?

Interessados em desvendar os porquês da Lei Maria da Penha gerar tanta polêmica, alguns estudiosos iniciaram pesquisas sobre o tema, questionando se a prática da lei realmente atendeu às necessidades da mulher agredida, e se a nova lei realmente atingira a eficácia desejada em sua promulgação. Umas dessas estudiosas é a advogada e professora de Direito Penal da Universidade Federal de Sergipe (UFS), Daniela Costa.
DAGV. Foto: Daniele Melo
Para Daniela, que também é coordenadora de um grupo de pesquisas com alunos do curso de Direito da UFS, a lei traz um procedimento diferente para as resoluções de violência contra a mulher, pois a própria lei define o que venha ser esta violência, determinado que a violência doméstica é aquela que ocorre envolvendo pessoas que convivem dentro de um mesmo ambiente, não importando se há parentesco ou não. E a violência familiar é aquela que envolve parentesco, consanguinidade ou por afinidade mesmo que os indivíduos não morem na mesma residência. Sendo assim a lei abrange os dois aspectos: a violência doméstica e familiar contra a mulher.
“A finalidade da lei foi dar um tratamento diferenciado quando a violência for praticada dentro desse ambiente doméstico e familiar e tiver como vítima a mulher. A diferença básica é a seguinte: antes da lei essa violência era tratada pelo procedimento comum da justiça penal, com grande maioria dos casos indo para resolução dentro do Juizado Especial Criminal, que abrigava os casos de lesão corporal leve, de ameaça, e de lesão culposa” explica Daniela.
Antes da Lei Maria da Penha ser promulgada as agressões contra a mulher eram tratadas de forma generalizada, igualando violências distintas, já que a violência contra a mulher tem uma natureza peculiar. “Esse tipo violência nasce de uma relação que se imaginava ser de afeto, com raízes complexas e de difícil compreensão para quem está de fora. E esta situação se transforma em uma dinâmica perversa em que há um jogo de poder, formando-se um ciclo vicioso, difícil de ser rompido” esclarece a pesquisadora da UFS.
O importante é ressaltar que a lei não cria novos crimes e nem penas diferentes, ela faz uma diferenciação no conceito, mostrando que a violência contra a mulher não se restringe à violência física. A lei elenca cinco tipos de violência contra a mulher: a física, a psicológica, a sexual, a patrimonial e a moral. Além destas novidades ela estabelece uma forma de procedimento diferente por parte da delegacia, por parte do judiciário e do juiz que for atender o caso, trazendo o aspecto mais comemorado num primeiro momento: as “medidas protetivas de urgência”.
As medidas protetivas abrangem a proteção às ofendidas e aos agressores. As ofendidas devem ser amparadas desde o primeiro momento quando a mulher chega à delegacia e descreve a violência que sofreu. Na prática, estas medidas protetivas seriam, por exemplo, o acompanhamento desta mulher por um policial para que ela recolha seus pertences da residência onde estava ou que o agressor seja afastado do lar.

Daniela Costa. Foto: Accioly
“São medidas que impeçam que o agressor de se aproximar desta mulher, medidas que possam garantir o emprego dela, de uma forma que o vínculo empregatício fique garantido até seis meses, mesmo sem remuneração nesse período. Tudo para que a mulher se sinta acolhida” conta Daniela.
Outro detalhe pouco conhecido da lei é a proteção também para o agressor. Por exemplo, o homem que agride a sua companheira e tem filhos com ela, deve ter vínculos cortados com os filhos? A lei deixa isso em aberto, porque às vezes o comportamento agressivo do homem fica limitado à companheira, mas não atinge os filhos. Por isso a Lei Maria da Penha diz que o assistente social, o psicólogo, devem fazer um estudo sobre cada caso, conversando com os filhos do casal, com o agressor, para diagnosticar o que seria melhor para aquela família.
“Porque a ideia da lei não é ser um instrumento de vingança para a mulher. A ideia é não proporcionar a subjugação do homem e nem da mulher” esclarece a pesquisadora da UFS, mostrando que a lei traz uma proposta audaciosa, porém, para que ela possa atingir seu objetivo é essencial que toda a estrutura prevista na lei seja implantada. A lei estipula a criação, por parte dos Tribunais de Justiça dos estados e do Distrito Federal, de um Juizado Especial de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher que proporcione maior agilidade aos processos.
A informação do Judiciário de Sergipe é que esse juizado ainda não foi criado. Em Aracaju todas as demandas estão sendo concentradas em uma única vara, como uma alternativa para conferir maior agilidade, funcionando como um paliativo, porque se não há exclusividade, essa vara irá atender também a outros casos e acaba sobrecarregada, impossibilitando acolher plenamente essa mulher, e oferecer o atendimento multidisciplinar que a lei prevê.

Slogan da Campanha. Divulgação

Um dos pontos abordados também pela lei é a desistência por parte da mulher de levar os processos adiante, só este ano no Estado, das 1.343 (mil trezentos e quarenta e três) ocorrências registradas, calculou-se o número de 174 (cento e setenta e quatro) desistências. A pesquisadora Daniela explica que as mulheres, quando vão à Justiça, estão buscando o restabelecimento do diálogo que foi rompido com aquele agressor, e nem sempre a primeira intenção delas é a prisão do companheiro, o que gera certo conflito já que a lei é bastante impositiva e não deixa margens para negociação.
“A Lei Maria da Penha não admite que seja aplicada nenhuma das possibilidades de mediação, de conciliação, que são os principais instrumentos dos Juizados Especiais Criminais. Ela é uma lei eminentemente penal. Se a mulher foi até o judiciário e aceitou que o processo fosse adiante, não haverá outra forma que não seja a aplicação das penas cabíveis. E isso amedronta muito as mulheres. Cria um efeito negativo. Tudo o que o Estado não deseja criar” explica Daniela Costa.


Links:

Lei Maria da Penha

Campanha Ponto Final na violência contra mulher

Reportagem e Fotos: Daniele Melo e Victor Bruno 

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