Transexualidade e a luta pela verdadeira identidade

segunda-feira, 28 de novembro de 2011


Nunca se falou tanto em transexualidade como nos últimos anos. No Brasil, entre os participantes do Big Brother Brasil 11, estava a transexual Ariadna Arantes. Não foi diferente em um reality show na Argentina, em que o galã da última edição, Alejando Iglesias, nasceu mulher. No mundo da moda, a modelo transexual Lea T, filha do ex -jogador Toninho Cerezo, está entre as 50 principais modelos da atualidade.
Mas se nascer em um corpo estranho ao seu verdadeiro sexo não é fácil para os que estão no auge das atenções da imprensa, imagine para as centenas de transexuais que estão nos bastidores desses holofotes. Invisíveis para a sociedade, centenas de transexuais tem seus cotidianos marcados pelo preconceito, medo, aflição e angústia. “Somos o lixo do mundo”, declarou Lea T em entrevista à jornalista Marília Gabriela. E a quem dar ouvidos, ao sexo biológico ou ao sexo psicológico? A filósofa Simone Beauvoir é dona de um dito bastante conhecido e utilizado em mesas de debates sobre sexualidade: “Não se nasce mulher, torna-se mulher”, afirma ela.
A diversidade tem espaço na biologia, esta não se restringe somente aos padrões binários estabelecidos socialmente em masculino e feminino. Não existem somente as combinações cromossômicas XX ou XY, como ensinaram às inocentes crianças na escola. Esqueceram de falar dos inter-sexos, da variedade de possíveis combinações entre o X e o Y, que formam enormes mosaicos genéticos, de modo que um mesmo organismo possa conter células masculinas e femininas. Mas se nem na biologia os gêneros são delimitados, é mais difícil ainda acreditar numa certa rigidez entre ser homem e ser mulher quando se leva em conta a subjetividade humana. É importante destacar que a transexualidade não está ligada necessariamente à homossexualidade. Existem casos de transexuais que nasceram homens, mas que se sentem mulheres e desenvolvem relações “lésbicas”, como transexuais que nasceram mulheres, mas que se sentiam homens gays.
professor doutor em psicologia Elder Cerqueira
No Brasil, como em boa parte do mundo, ser transexual é ser doente. De acordo com o Doutor em Psicologia e pesquisador na área de sexualidade, Elder Cerqueira, o indivíduo transexual é considerado portador de um transtorno de identidade de gênero, segundo a classificação diagnóstica do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), que é uma diretriz básica que prescreve psicopatologias em nível mundial. Em sua sala, no núcleo de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Sergipe (UFS), Elder Cerqueira avaliou como contraditória a situação do Brasil diante da transexualidade, uma vez que as assistências psicológicas, psiquiátricas e a cirurgia de mudança de sexo só são garantidas pelo poder público através do Sistema Único de Saúde (SUS), por considerar o transexual como portador de uma doença. “O diagnóstico para a cirurgia de transexualidade é longo e é feito por psicólogos e psiquiatras. Em geral, pelo SUS o individuo passa por dois anos tendo acompanhamento psicológico e psiquiátrico. Ele faz uma parte de consultas individuais com psicólogo, tem consultas regulares com o psiquiatra e depois tem um acompanhamento de grupo com outros indivíduos que estão na fila de espera, conhecendo pessoas que já passaram pela cirurgia”, explica Elder.
O acompanhamento psicológico pode se estender por mais de dois anos por decisão dos profissionais que acompanham o indivíduo. E caso no final eles atestem através de um laudo que a pessoa é transexual, esta vai para uma longa fila de espera. Elder Cerqueira contou que no atendimento que é feito pelo SUS, em determinados casos a família é chamada para a composição do laudo psicológico, e que raramente é necessário que seja ofertado acompanhamento psicológico para os membros da família também, para que possam lidar melhor com a situação. “O que não é tão comum porque quando o paciente chega a esse ponto ele já passou por um processo familiar que foi bastante complicado. Em geral, os pacientes que chegam para fazer a cirurgia de transexualização, já tomaram hormônios, já tem seios, já injetaram silicone e, a cirurgia de transexualização acaba funcionando como se fosse o último passo, simplesmente a mudança da genitália.”, ressalta.
O processo de transexualização não é fácil, além de serem punidos socialmente por se vestirem como o sexo oposto, os transexuais precisam tomar hormônios para o resto da vida mesmo após a operação na genitália. Depois da cirurgia, as doses de medicamentos hormonais apenas são diminuídas, mas nunca cessadas. Os hormônios têm efeitos colaterais e podem, por exemplo, produzir excesso de células vermelhas no sangue (policitemia); além de trombose; bloqueio de um vaso sanguíneo nos pulmões (embolia pulmonar); alteração da função hepática, entre outros riscos.
Sobre a dificuldade de aceitação por parte da sociedade, Elder Cerqueira comenta de maneira otimista que tem acontecido rápidos avanços em meio a essa indiferença, como o reconhecimento de alguns direitos, como poder mudar o nome do registro civil. “Na história da sexualidade a gente acabou de sair de um certo puritanismo que dominou a nossa sociedade por alguns séculos, então nós estamos revendo algumas questões em relação à orientação sexual e à transexualidade que tem sido difíceis de encarar pela nossa sociedade ocidental atual”, salienta.
Quando questionado se havia uma forte disparidade entre o transexual que nasce homem e o que nasce mulher, o doutor em psicologia explicou que as diferenças estão relacionadas aos valores dos grupos sociais e à cultural local, nos quais eles estão inseridos. “Aqui no nordeste, como no Brasil como um todo, a cultura é muito mais machista, patriarcal, então pode ser um pouco mais complicado, nesse contexto, para o homem passar a assumir uma identidade de gênero feminino, pois desde o primeiro momento ele é coibido, enquanto que uma mulher que tem atitudes ditas masculinas, de inicio tem uma melhor aceitação numa sociedade machista”, explica.
Em meio a esse processo encontramos histórias de transexuais que lutam para serem reconhecidas e respeitadas segundo sua verdadeira identidade, como é o caso da estudante de Jornalismo, Dafnne Vitória, que nasceu menino, mas desde a infância sabia que era diferente. Lembro-me que toda vez que era exposta a algum tipo de constrangimento ou humilhação, me prendia no banheiro e chorava muito. Na escola era excluída, os colegas de classe não ficavam ao meu lado e sempre era deixada de lado na hora das atividades. Muitas vezes era necessário que a professora interviesse a meu favor”, relata.
estudante de jornalismo Dafnne Victoria
As relações de Dafnne e seu comportamento com as mulheres desde criança sempre foi a mesma de uma mulher heterossexual. Nunca se interessou, nem beijou alguém do sexo feminino.
 Desde 2004, quando começou a trabalhar e saiu da casa dos pais, Dafnne usa roupas femininas, maquiagem e assume sua identidade de gênero. Nascida no interior de Sergipe, em Canindé, numa família de nove filhos, a transexual revela que a relação com os familiares teve momentos de tensão. “Recordo-me que meus dois irmãos gritavam: ‘não sei por que você é assim’. Como se eu pudesse escolher ter nascido diferente. Já com minhas irmãs, a relação sempre foi menos conflituosa. E meus pais usam daquele artifício clássico de fingir que não sabem que sou transexual”, conta.  Como a maioria das transexuais, durante o processo de autodescoberta de sua condição de gênero, Dafnne se viu sozinha, sem ninguém para orientá-la, caiu em depressão e chegou a buscar o suicídio como saída.
A relação com o corpo biológico é de estranheza. “É incômodo tocar no órgão sexual ou deixar ser tocada. Nunca me vi ou achei pertencente ao sexo masculino”. Para evitar constrangimentos no seu cotidiano, Dafnne evita ao máximo ingerir líquidos para não necessitar ir ao banheiro. Sobre seu dia-a-dia nos espaços em que transita, ela define como “de muito preconceito, luta, força, coragem e perseverança”, Dafne sintetiza : “Não levam em consideração que somos humanas, trabalhamos, estudamos, temos sentimentos, pagamos impostos e temos direitos, os quais deveriam ser respeitados. Preconceito também é chamar uma transexual pelo seu nome de registro. Quando você faz isso, mesmo sem ter a intenção, ostenta o preconceito. E isso é comum no meu dia- a- dia na Universidade.”
A cirurgia de mudança de sexo já faz parte dos seus sonhos há muito tempo, porém começou a buscá-la efetivamente a partir de agosto deste ano. No entanto, para dar início ao processo, a transexual precisa de um endocrinologista disposto a assinar um laudo constatando sua condição sexual. O que não está sendo nada fácil de conseguir. A mudança do nome do registro foi providenciada desde outubro, através da assessoria jurídica do Centro de Referência e de Combate a Homofobia de Sergipe. A primeira audiência marcada para fevereiro de 2012 é esperada ansiosamente. Em meio a cenários de desprezo social, Dafnne se revela uma mulher feliz, e faz planos para o futuro: Sonho em casar, ter filhos, enfim, constituir uma família. Também quero me estabilizar no jornalismo, que é uma das paixões da minha vida.”
 Em Sergipe, a primeira transexual a conseguir mudar o nome no registro civil foi Priscila Sobral. Já Adriana Lohanna foi a primeira transexual sergipana a conseguir liberação para mudança de sexo pelo SUS. A cirurgia será realizada no Rio de Janeiro, e até lá, Adriana será acompanhada por psicólogos e psiquiatra.

Por Sóstina Santos
Fotos: Dafnne Victoria
Edição: Isabelle Marques

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