Histórias de Pescador: a preservação de costumes na comunidade do Mosqueiro

terça-feira, 9 de abril de 2013

Rio Vaza Barris (Foto: blog Sergipe em Fotos)

Em intenso processo de crescimento populacional resultante da especulação imobiliária que se instalou na região, o bairro Mosqueiro tem passado por transformações. Essas mudanças dizem respeito muito mais ao espaço físico do que aos aspectos culturais, já que é claramente identificável a permanência de alguns hábitos tradicionais, como é o caso da pesca artesanal. O resgate das histórias de vida de moradores vai ajudar a entender mais sobre como pescadores e marisqueiras têm preservado a cultura e identidade local.
A primeira delas é a do José Valter da Conceição, 65, mais conhecido como Seu Zé. Homem sério, de poucas palavras, mas de um sorriso que é de encher os olhos. Muitas redes foram lançadas desde as primeiras pescarias do Seu Zé, pescador experiente, que começou na atividade aos 18 anos de idade. Neto de pescador, logo descobriu com o avô os labores do ofício. “Aprendi a pescar com meu avô, ele ficou velho, ‘foi embora’ e eu fiquei”, diz.

José Valter da Conceição, 65, pescador
Família de gente simples a do Seu Zé. Sua mãe saiu de casa logo cedo para buscar uma oportunidade em Aracaju. Trabalhou como empregada doméstica na cidade grande, logo depois ficou grávida. Mãe solteira, assim que deu a luz, teve de retornar à casa dos pais. Assim, com poucos dias de vida, Seu Zé e a mãe foram morar com os avós. Desde então, entre o rio e o mar, não existem limites para o pescador. O homem lembra da infância, do tempo em que o local era pouco povoado, e que a pesca estava voltada basicamente para o consumo e a venda mínima para a subsistência da família. “Hoje o rio não cabe mais de tanto pescador, tanto daqui quanto de fora”, relata.
Raízes históricas
Antes de 1989, o Mosqueiro e toda a chamada Zona de Expansão pertenciam ao município de São Cristóvão. Mesmo após a incorporação da região à capital, em virtude da distância do centro da cidade, o local manteve certo isolamento que veio a favorecer a permanência da comunidade mais ou menos nos moldes de outrora. Nesse sentido, destaca-se a conservação de um repertório considerável de grupos folclóricos. Seja no ritmo do samba-de-coco, reisado ou quadrilha, as raízes culturais continuam presentes no imaginário local.

José Domingues, 48, pescador

Os estreitos laços estabelecidos entre os indivíduos é um traço marcante da comunidade. “Aqui sempre foi de família”, diz o pescador José Domingues Santos, 48, o famoso “Escorrega”. “Ainda hoje muita gente só se conhece pelo apelido ou por filho de fulano, neto de beltrano”. Vindo de família de pescador, Escorrega e seus três irmãos aprenderam a pescar com o pai e continuam tirando do rio o sustento. No entanto, hoje, nenhum dos seus filhos faz uso da atividade para o mesmo fim.
A riqueza natural do rio Vaza Barris permite aos pescadores formas diversas de satisfazer as suas necessidades. Escorrega bem sabe disso. “Quando a maré não tá boa aí, nós corremos pros siris, a gente pega siri, pega caranguejo, pega camarão, o que você imaginar aí nós pegamos, e por aí vai levando”. Além do domínio das mais diversas modalidades de pesca e coleta de mariscos, a maioria dos pescadores confecciona seus artifícios: redes de arrasto, tarrafas, varas de pescar, sirizeiras, jererés, etc.
 É interessante destacar que a produção de catados e produtos derivados de peixes e mariscos é uma das atividades secundárias que asseguram renda à comunidade nos períodos de defeso do caranguejo e do camarão, que variam entre duas e três vezes ao ano. Durante essa época em que os animais estão se reproduzindo, os pescadores devidamente registrados também recebem um auxílio do governo.
Mulheres de fibra
A marisqueira Ednalva Santos, 47 anos, muito já viveu dentro do mangue. Desde criança, Ednalva já acompanhava seu pai durante as pescarias e o observava de dentro do barco. Ele bem que tentou fazer com que a menina o acompanhasse fora da lama, mas Ednalva não se sentia satisfeita, até que um dia resolveu reclamar. Depois desse dia, Ednalva disse que nunca mais foi dependente de ninguém. Com apenas 12 anos saiu de casa e foi trabalhar numa casa de família como empregada doméstica e aos 18 anos se casou com o pai de suas filhas, hoje falecido.
Antes da morte do marido, a família da Ednalva era sustentada por ela e pelo companheiro. Enquanto ele trabalhava descascando coco para tiradores da região ela trabalhava no mangue. “Era um meio de sobrevivência, porque ele [o marido] só vivia de coco, os tiradores iam tirar e chamavam ele para debulhar. Eu também comecei, mil, quatrocentos, quinhentos cocos, era eu e ele, um d’um lado outro do outro”, recorda.
A família da dona Ednalva não é exceção, pois é bem comum encontrarmos famílias inteiras que vivem tanto da pesca quanto da coleta do coco, já que o fruto é abundante na região.
Pesquisadora fala sobre a comunidade de pescadores
A geógrafa Shauane Nunes, mestre pela Universidade Federal da Paraíba desenvolveu sua dissertação com base em um estudo sob o título “A pesca artesanal como mediação da relação homem natureza: a permanência e resistência nas comunidades pesqueiras do Mosqueiro”. A pesquisadora questiona o significado da palavra tradicional, já que, para ela, seu sentido extrapola os limites do uso cotidiano que liga apenas aos antigos costumes. “Acho que o termo deve ser sim usado já que identifica grupos diante de políticas públicas necessárias, mas considero o termo pejorativo”. E prossegue justificando, “essas comunidades para permanecer e resistir travam enfrentamentos cotidianos, resistem para permanecer enquanto tradicionais”.
A geógrafa explica também a diferencial concepção de modos de vida a que os indivíduos das comunidades tradicionais fazem uso. Para ela, “o pescador em sua relação com a natureza mediada pelo trabalho, pesca, extrativismo, agricultura, tem outra lógica que não a do consumo. Prevalece assim o valor de uso da comunidade, da natureza enquanto condição e garantia da sobrevivência”, diz.
Segundo Shauane, as relações do pescador com rio obedecem a um esquema de troca baseado no respeito mútuo. “Para eles, o rio é a própria vida, e não tem porque desafiá-la e ir contra a maré. É preciso vivenciar seus tempos, o tempo da natureza, e não do relógio, e tanto o estuário quanto o mar adentro não é para qualquer um. Para os pescadores e marisqueiras, é preciso aprender a pescar, respeitar o conhecimento dos mais velhos e, principalmente, respeitar a própria natureza que tem seus perigos quando não se conhece os caminhos”, afirma.
Para finalizar, a pesquisadora situa a percepção dos pescadores e marisqueiras em suas relações com o rio. “O rio é a possibilidade de liberdade, pelo fato de o pescador não precisar se assalariar para não morrer de fome, foi da maré que criaram seus filhos, é lá que se constrói a identidade a partir da pesca, onde se sentem saudáveis, vivos. Há um respeito a essa natureza que é aprendido no cotidiano do trabalho, das relações construídas. O rio não é o supermercado, é esfera e extensão de suas vidas”, conclui.


Texto: Fernando Moreira de Souza
Edição: Samara Pedral dos Santos

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