Rio Vaza Barris (Foto: blog Sergipe em Fotos) |
Em intenso processo de crescimento populacional resultante da especulação imobiliária que se instalou na região, o bairro Mosqueiro tem passado por transformações. Essas mudanças dizem respeito muito mais ao espaço físico do que aos aspectos culturais, já que é claramente identificável a permanência de alguns hábitos tradicionais, como é o caso da pesca artesanal. O resgate das histórias de vida de moradores vai ajudar a entender mais sobre como pescadores e marisqueiras têm preservado a cultura e identidade local.
A primeira delas é
a do José Valter da Conceição, 65, mais conhecido como Seu Zé.
Homem sério, de poucas palavras, mas de um sorriso que é de encher
os olhos. Muitas redes foram lançadas desde as primeiras pescarias
do Seu Zé, pescador experiente, que começou na atividade aos 18
anos de idade. Neto de pescador, logo descobriu com o avô os
labores do ofício. “Aprendi a pescar com meu avô, ele ficou
velho, ‘foi embora’ e eu fiquei”, diz.
José Valter da Conceição, 65, pescador |
Família de gente
simples a do Seu Zé. Sua mãe saiu de casa logo cedo para buscar uma
oportunidade em Aracaju. Trabalhou como empregada doméstica na
cidade grande, logo depois ficou grávida. Mãe solteira, assim que
deu a luz, teve de retornar à casa dos pais. Assim, com poucos dias
de vida, Seu Zé e a mãe foram morar com os avós. Desde então,
entre o rio e o mar, não existem limites para o pescador. O homem
lembra da infância, do tempo em que o local era pouco povoado, e que
a pesca estava voltada basicamente para o consumo e a venda mínima
para a subsistência da família. “Hoje o rio não cabe mais de
tanto pescador, tanto daqui quanto de fora”, relata.
Raízes
históricas
Antes de 1989, o
Mosqueiro e toda a chamada Zona de Expansão pertenciam ao município
de São Cristóvão. Mesmo após a incorporação da região à
capital, em virtude da distância do centro da cidade, o local
manteve certo isolamento que veio a favorecer a permanência da
comunidade mais ou menos nos moldes de outrora. Nesse sentido,
destaca-se a conservação de um repertório considerável de grupos
folclóricos. Seja no ritmo do samba-de-coco, reisado ou quadrilha,
as raízes culturais continuam presentes no imaginário local.
José Domingues, 48, pescador |
Os estreitos laços estabelecidos entre os indivíduos é um traço marcante da comunidade. “Aqui sempre foi de família”, diz o pescador José Domingues Santos, 48, o famoso “Escorrega”. “Ainda hoje muita gente só se conhece pelo apelido ou por filho de fulano, neto de beltrano”. Vindo de família de pescador, Escorrega e seus três irmãos aprenderam a pescar com o pai e continuam tirando do rio o sustento. No entanto, hoje, nenhum dos seus filhos faz uso da atividade para o mesmo fim.
A riqueza natural do
rio Vaza Barris permite aos pescadores formas diversas de satisfazer
as suas necessidades. Escorrega bem sabe disso. “Quando a maré não
tá boa aí, nós corremos pros siris, a gente pega siri, pega
caranguejo, pega camarão, o que você imaginar aí nós pegamos, e
por aí vai levando”. Além do domínio das mais diversas
modalidades de pesca e coleta de mariscos, a maioria dos pescadores
confecciona seus artifícios: redes de arrasto, tarrafas, varas de
pescar, sirizeiras, jererés, etc.
É interessante
destacar que a produção de catados e produtos derivados de peixes e
mariscos é uma das atividades secundárias que asseguram renda à
comunidade nos períodos de defeso do caranguejo e do camarão, que
variam entre duas e três vezes ao ano. Durante essa época em que os
animais estão se reproduzindo, os pescadores devidamente registrados
também recebem um auxílio do governo.
Mulheres de fibra
A marisqueira
Ednalva Santos, 47 anos, muito já viveu dentro do mangue. Desde
criança, Ednalva já acompanhava seu pai durante as pescarias e o
observava de dentro do barco. Ele bem que tentou fazer com que a
menina o acompanhasse fora da lama, mas Ednalva não se sentia
satisfeita, até que um dia resolveu reclamar.
Depois
desse dia, Ednalva disse que nunca mais foi dependente de ninguém.
Com apenas 12 anos saiu de casa e foi trabalhar numa casa de família
como empregada doméstica e aos 18 anos se casou com o pai de suas
filhas, hoje falecido.
Antes da morte do
marido, a família da Ednalva era sustentada por ela e pelo
companheiro. Enquanto ele trabalhava descascando coco para tiradores
da região ela trabalhava no mangue. “Era um meio de sobrevivência,
porque ele [o marido] só vivia de coco, os tiradores iam tirar e
chamavam ele para debulhar. Eu também comecei, mil, quatrocentos,
quinhentos cocos, era eu e ele, um d’um lado outro do outro”,
recorda.
A família da dona
Ednalva não é exceção, pois é bem comum encontrarmos famílias
inteiras que vivem tanto da pesca quanto da coleta do coco, já que o
fruto é abundante na região.
Pesquisadora fala
sobre a comunidade de pescadores
A geógrafa Shauane
Nunes, mestre pela Universidade Federal da Paraíba desenvolveu sua
dissertação com base em um estudo sob o título “A pesca
artesanal como mediação da relação homem natureza: a permanência
e resistência nas comunidades pesqueiras do Mosqueiro”. A
pesquisadora questiona o significado da palavra tradicional, já que,
para ela, seu sentido extrapola os limites do uso cotidiano que liga
apenas aos antigos costumes. “Acho
que o termo deve ser sim usado já que identifica grupos diante de
políticas públicas necessárias, mas considero o termo pejorativo”.
E prossegue justificando, “essas comunidades para permanecer e
resistir travam enfrentamentos cotidianos, resistem para permanecer
enquanto tradicionais”.
A geógrafa explica
também a diferencial concepção de modos de vida a que os
indivíduos das comunidades tradicionais fazem uso. Para ela, “o
pescador em sua
relação com a natureza mediada pelo trabalho, pesca, extrativismo,
agricultura, tem outra lógica que não a do consumo. Prevalece assim
o valor de uso da comunidade, da natureza enquanto condição e
garantia da sobrevivência”, diz.
Segundo
Shauane, as relações do pescador com rio obedecem a um esquema de
troca baseado no respeito mútuo. “Para
eles, o rio é a própria vida, e não tem porque desafiá-la e ir
contra a maré. É preciso vivenciar seus tempos, o tempo da
natureza, e não do relógio, e tanto o estuário quanto o mar
adentro não é para qualquer um. Para os pescadores e marisqueiras,
é preciso aprender a pescar, respeitar o conhecimento dos mais
velhos e, principalmente, respeitar a própria natureza que tem seus
perigos quando não se conhece os caminhos”, afirma.
Para
finalizar, a pesquisadora situa a percepção dos pescadores e
marisqueiras em suas relações com o rio. “O rio é a
possibilidade de liberdade, pelo fato de o pescador não precisar se
assalariar para não morrer de fome, foi da maré que criaram seus
filhos, é lá que se constrói a identidade a partir da pesca, onde
se sentem saudáveis, vivos. Há um respeito a essa natureza que é
aprendido no cotidiano do trabalho, das relações construídas. O
rio não é o supermercado, é esfera e extensão de suas vidas”,
conclui.
Texto: Fernando Moreira de Souza
Edição: Samara Pedral dos Santos
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